Direitos humanos não são de direita nem de esquerda”
Veja - 25/04/2011 |
Secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty visita o Brasil e planeja a volta da entidade ao país, depois de dez anos Depois de dez anos de ausência, a Anistia Internacional que celebra seu cinquentenário em 2011 - está prestes a reabrir um escritório no Brasil. Com 3 milhões de colaboradores em ] 50 países, a ONG é uma das mais amantes na defesa dos direitos humanos ao redor do mundo. Há algo de nivelador na abordagem da Anistia." Em seus documentos, países democráticos e ditaduras com frequência são tratados de maneira indistinta. Não é o que faz, por exemplo, a Freedom House, que sempre cuida de distinguir sociedades livres (como os Estados Unidos) das não livres (como a China). Mas, se permite aos cínicos dizer que "todos os países têm problemas nessa área", a abordagem da Anistia tem também um mérito: insistir no valor universal dos direitos humanos. "Direitos humanos não são nem de esquerda nem de direita", disse à repórter Cecília Araújo, de Londres, o secretário-geral da ONG. o indiano Salil Shetty, que nesta semana visita o Brasil para discutir uma agenda de direitos humanos para um país "que cresceu muito em relevância no cenário internacional". A anistia de volta ao Brasil Escolhemos este momento para voltar ao Brasil porque o país cresceu muito em relevância no cenário internacional e passa por um grande surto de desenvolvimento. Queremos nos certificar de que, por trás do desenvolvimento econômico, a população tem seus direitos fundamentais respeitados. Para nós, se houver qualquer risco aos direitos humanos, os planos econômicos devem ser postos em segundo plano. No caso da usina hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo, muitas pessoas serão deslocadas, terão de deixar o lugar onde vivem. É possível concordar com esse tipo de deslocamento? Sim. Mas, antes, governo e afetados devem chegar a um acordo. E isso ainda não ocorreu em Belo Monte. Há também dois grandes eventos no horizonte, a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016, que demandarão grandes obras, iniciativas de segurança, ações de todo tipo. Queremos ter certeza de que os direitos humanos serão respeitados na preparação e no desenrolar desses eventos. Apesar de iniciativas promissoras, como a das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro, a questão policial no Brasil ainda é crítica. No Rio, cerca de 20% dos assassinatos são cometi?os por policiais, o que indica que há uso excessivo da força e, portanto, deficiências no treinamento e no controle dos agentes. Comissão da verdade para que? O tema da impunidade é muito importante para a Anistia. Não aceitamos o perdão a crimes como tortura ou sequestro. Por isso, consideramos importante a decisão de qualquer país de investigar o passado, para que os responsáveis por crimes desse tipo não saiam impunes - o que pode evitar que novas violações ocorram no futuro. Também acreditamos que nesse olhar para o passado não se deve tomar partido. Se houve crime, ele deve ser julgado, não importa qual o lado. No caso do Brasil, certamente há muito que apurar sobre mais de vinte anos de ditadura. Parece-me que o passivo maior está do lado das autoridades do regime militar. Algumas cometeram abusos sem jamais responder por eles. Nós, da Anistia, damos boas-vindas à ideia de criar uma Comissão da Verdade que explore os crimes cometidos num período de exceção. Com a ressalva de que é preciso conferir o que será feito na prática. qual tipo de medida será aprovado. Ajuste da rota na política externa Andávamos preocupados com a política externa adotada pelo Brasil no governo Lula. Não podíamos concordar com a forma como o governo brasileiro lidava com o Irã no âmbito dos direitos humanos. Inúmeros relatórios mostram que, especialmente depois das eleições presidenciais de 2009, a repressão política, o número de execuções e a censura aumentaram consideravelmente naquele país. No período de um mês, 97 pessoas foram executadas. É muito importante que o Brasil se posicione de maneira mais objetiva diante dessa situação. A presidente Dilma Rousseff acaba também de voltar da China. Devido à importância econômica da China, fala-se muito pouco sobre direitos humanos em seus encontros bilaterais com esse país. Mas seria muito salutar que nações emergentes, como o Brasil, adotassem um discurso mais honesto nesse aspecto. É preciso reconhecer os progressos da China, mas destacar que, quanto aos direitos humanos, ainda há muito a ser feito. Em meio à crise no Oriente Médio e no norte da África. o governo chinês aumentou a repressão e a censura. Além disso. a China é líder em execuções - apesar de o governo não divulgar os números exatos. Intervenção militar na Líbia A situação na Líbia era tão obscura às vésperas da intervenção que ninguém sabia o que poderia acontecer aos civis. O Conselho de Segurança da ONU tomou uma posição e, felizmente. conseguiu agir rapidamente. Para a Anistia,. minimizar a violência contra civis inocentes é o mais importante, embora não sejamos a favor do uso da força. Por outro lado, fomos os primeiros a pedir à ONU que levasse o caso das autoridades líbias, especialmente o ditador Muamar Kadafi, ao Tribunal Penal Internacional. Felizmente. o Conselho de Segurança aceitou. Também fomos os primeiros a pedir pelo embargo de armas. pelo cessar-fogo, e também por um corredor humanitário no país. Além de tudo isso. seguimos monitorando de peno Bengasi e as cidades vizinhas para evitar a violação dos direitos humanos dos civis. Universal X tribal Há quem diga que a ideia de direitos universais não faz semido, que não se pode querer que os mesmos valores sejam abraçados por todas as culturas, em todo lugar. Com frequência, quem diz isso tem privilégios muito bem assegurados. e por isso não se importa - ou então se favorece - com o que acontece ao seu redor. Há também quem afirme que o condicionamento cultural torna aceitável para muitos aquilo que para nós é bárbaro. A esses, eu gostaria de apontar os acontecimentos recentes nos países árabes. Ames das revoltas que vêm derrubando regimes, podia-se dizer, com certo cinismo, que a população daqueles países era complacente com a violação dos direitos humanos que acontecia por lá. Esse argumento tornou-se inviável agora. Num mundo ainda cheio de tribos e particularismos, creio que a ideia dos direitos universais tem, sim, avançado. E nós continuaremos nos esforçando para que isso aconteça. Lembre-se de nosso lema: "A violação dos Direitos Humanos em qualquer lugar é um problema das pessoas em toda pane". Esse é um dos motivos por que não fazemos rankings de países que violam mais ou menos os direitos humanos. De 1948 a 2011 A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi redigida em 1948. Não acho que vale a pena perder tempo modificando o texto. Os problemas espalhados pelo mundo em relação aos direitos humanos não têm a ver com a declaração em si, mas com sua implementação. Há. claro, iniciativas locais que trazem avanços. A própria legislação brasileira é um exemplo disso. ela é uma das mais fortes em termos de direitos humanos, pois defende iniciativas específicas contra tortura e escravidão, por exemplo. Inevitavelmente, questões novas também surgem com o passar do tempo. Por exemplo: o acesso à internet deve ser tido como um direito humano? É algo que será discutido nos próximos anos. Mas a declaração, tal como é, representa uma grande fonte de inspíração. Carrego-a sempre comigo. • |